quarta-feira, 4 de dezembro de 2013


Francisco, reconstrói a minha casa.

 

Nos últimos meses de 1205 ou, no mais tardar, no início do ano de 1206, o jovem Francisco de Assis teve uma profunda e singular experiência de Deus, que o atraía para si através de um longo processo de conversão. Depois de desistir da guerra na Apúlia (sul da Itália) e voltar para a casa de seus pais, rezando diante do Crucificado da pequenina ermida de São Damião, Francisco ouviu uma voz que lhe dizia: “Reconstrói a minha casa”.

 


 
São Damião, lugar muito especial para a história franciscana, cuja construção remonta provavelmente aos dois últimos séculos do primeiro milênio, estava localizada próxima à cidade de Assis, não muito distante de seus muros. Foi dedicada aos mártires Cosme e Damião, porém em todos os documentos antigos só aparece o nome de São Damião.

 
Igreja de São Damião

No tempo da juventude de São Francisco a ermida de São Damião, propriedade do bispado de Assis, estava quase abandonada e precisando de reparos. Este estado lamentável, no qual se encontrava a pequena igreja, deve ter despertado no jovem Francisco um sentimento de compaixão por aquele santo lugar, onde escutara a voz divina que lhe falava ao coração.


Havia naquela ermida um grande e belo ícone do Crucificado, pintado por um artista anônimo, provavelmente da própria Itália, que media 1,90 metro de altura por 1,20 metro de largura. O Crucificado foi pintado,não como o homem das dores e do sofrimento, mas como Aquele que está vivo e glorioso, mostrando a sua vitória sobre a morte. Seus olhos expressivos e bem abertos contemplam com doçura o fiel que deles se aproxima. Certamente esta figura deve ter tocado o coração do jovem Francisco que, naquele momento, passava por uma profunda e radical transformação. Ainda hoje os peregrinos podem ver bem de perto este ícone (original), conservado na Basílica de Santa Clara, em Assis.

 
Interior da Igreja de São Damião.

 

 
Vejamos agora o que nos dizem os antigos biógrafos de São Francisco a respeito da sua experiência com o Crucificado de São Damião:

 

Tomás de Celano não registrou este episódio quando elaborou a primeira biografia do santo pai Francisco alguns anos após a sua morte. Na sua segunda biografia ele nos diz: “Num certo dia, anda perto da igreja de São Damião que estava quase em ruínas e abandonada por todos... Ao entrar nela para rezar, prosternando-se suplicante e devoto diante do Crucificado... sente-se diferente do que entrara. Imediatamente, a imagem do Cristo crucificado, movendo os lábios da pintura... fala-lhe, enquanto ele estava assim comovido. Chamando-o, pois, pelo nome, diz: ‘Francisco, vai e restaura a minha casa que, como vês, está toda destruída’. Francisco, a tremer, fica não pouco estupefato... prepara-se para obedecer, entrega-se totalmente ao mandato” (2Celano 10).
 

 


 
A Legenda dos Três Companheiros descreve o episódio assim: “Estando ele a andar nas proximidades da igreja de São Damião, foi-lhe dito em espírito que entrasse na mesma para a oração. Entrou nela e começou a rezar com fervor diante de uma imagem do Crucificado que piedosa e benignamente lhe falou, dizendo: ‘Francisco, não vês que minha casa está destruída? Vai, portanto, e restaura-a para mim’. Tremendo e admirando-se, ele diz: Fá-lo-ei de boa vontade, Senhor’. Ele entendeu que lhe fora dito daquela igreja que, por causa da extrema antiguidade, ameaçava uma ruína próxima” (LTC 13, 6-9).

 

São Boaventura, por sua vez, relata assim este acontecimento: “Num certo dia, saindo a meditar no campo, ao andar perto da igreja de São Damião, que devido à excessiva velhice ameaçava ruir, e como... tivesse entrado nela para rezar, prostrado diante da imagem do Crucificado, enquanto rezava, ... Ouviu com seus ouvidos corporais uma voz vinda da própria cruz que dizia por três vezes: ‘Francisco, vai e restaura minha casa que, como vês, está toda destruída!’. Francisco, a tremer, como estivesse sozinho na igreja, ... fica fora de si, entrando em êxtase. Voltando finalmente a si, prepara-se para obedecer” (Legenda Maior 2,1).
 

 
Crucifixo que falou para São Francisco.

 
Esta foi a missão que Deus confiou ao nosso pai Francisco: “Reconstrói a minha casa”. Apesar de começar imediatamente a restaurar velhas igrejas de Assis, mais tarde ele chegou a compreender este mandato de forma muito mais profunda, como nos assegura São Boaventura: O jovem Francisco “Recolhe todas as forças ao mandato de restaurar a igreja material, embora a principal intenção da palavra se referisse àquela Igreja que Cristo adquiriu com seu sangue, como o Espírito Santo o instruiu e ele depois revelou aos irmãos” (Legenda Maior 2,1 v.5).
 
 

Paz e Bem

 
 
Frei Salvio Romero, eremita capuchinho.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013


São Francisco e os leprosos
 
 
 
 

         Entre os muitos episódios e fatos ocorridos na juventude de Francisco de Assis, o encontro com o leproso foi o que teve mais influência no processo de sua conversão. A coragem de se aproximar dos leprosos, de tocá-los, de cuidar deles foi, sem dúvida, o ponto culminante de um longo caminho de transformação na vida do jovem de Assis.
 

Ele mesmo nos relata no início do seu Testamento, escrito bem próximo do final de sua vida, como lhe era amargo ver leprosos: “Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: como eu estivesse em pecados, parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles, e fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo se me converteu em doçura da alma e do corpo” (Testamento 1-3).
 
 
 



Quem eram os leprosos no tempo de São Francisco? Eram os últimos dos últimos de uma sociedade extremamente hierarquizada. Excluídos do convívio familiar e social, perambulavam pelos caminhos a procura de alguma ajuda caritativa. Andavam com sinetes, anunciando a presença indesejável deles para que, preventivamente, as outras pessoas pudessem deles tomar distância. Muitos eram acolhidos em abrigos específicos chamados de leprosários que geralmente se localizavam afastados das cidades.
 
 
 

A Legenda dos Três Companheiros nos diz que o jovem Francisco “não somente não os queria ver, mas também nem sequer se aproximar de suas habitações; e, se sucedia que de vez em quando ele passasse perto de suas casas ou os visse, embora por piedade se movesse a dar-lhe esmola por pessoa intermediária, sempre virando o rosto, tapava o nariz com suas próprias mãos” (LTC 11,10).
 

Esta mesma obra nos informa que certa vez o jovem Francisco “ao cavalgar pelas cercanias de Assis, encontrou um leproso. E porque se acostumara a ter muito horror de leprosos, fazendo violência a si mesmo, desceu do cavalo e ofereceu-lhe uma moeda, beijando-lhe a mão. E, depois de ter recebido do mesmo leproso o ósculo da paz, montou novamente em seu cavalo e prosseguiu o seu caminho. (...) Depois de poucos dias, tomando muito dinheiro, dirigiu-se ao hospital dos leprosos e, reunindo todos juntos, deu esmola a cada um, beijando-lhes as mãos” (LTC 11,3-5.7).
 
 

 

         Na primeira biografia do santo, Tomás de Celano relata que Francisco “se transferiu para junto dos leprosos e permanecia com eles, servindo com o maior cuidado a todos por amor de Deus” (1Celano 17,1). Ele também nos informa que o santo pai, "vivendo ainda no hábito secular, num certo dia encontrou um leproso e, superando-se a si mesmo, aproximou-se e beijou-o" (1Celano 17,4). Mais tarde, quando Celano redigiu uma segunda biografia do santo, ele registrou o mesmo episódio, acrescentando outros dados: “Num certo dia encontrou um leproso, quando cavalgava perto de Assis. Embora este lhe causasse não pouco incômodo e horror... saltando do cavalo, correu para beijá-lo. Quando o leproso lhe estendeu a mão como que para receber alguma coisa, ele colocou o dinheiro com um beijo. E montando imediatamente no cavalo e voltando-se para cá e para lá, não viu mais aquele leproso, ainda que o campo fosse aberto em todas as direções” (2Celano 9,9-12).
 
 
 


São Boaventura, ao escrever sobre o encontro e o convívio de Francisco com os leprosos, não acrescenta praticamente nada aos fatos já relatados por Tomás de Celano, apenas enriquece o texto com pequenos detalhes: “O amante de toda humildade transferiu-se para junto dos leprosos e permanecia com eles... Lavava-lhes os pés, enfaixava as feridas, retirava a podridão das chagas e enxugava o sangue purulento... Beijava também por admirável devoção as chagas ulcerosas deles” (Legenda Maior 2,6).
 
 
 

Convertendo-se de corpo e alma, o jovem Francisco se tornou próximo dos últimos e solidário para com eles. Francisco percebeu que o Filho de Deus se fizera menor e desprezível por amor de nós e para nossa salvação. Eis o caminho que ele descobriu ao conhecer de forma profunda o Evangelho de Cristo! Por isso, seguindo as pegadas do Mestre, ele quis ser também o irmão dos mais pobres e excluídos: “Mas pela graça de Deus, tornou-se tão familiar e amigo dos leprosos que, como está declarado em seu Testamento, permanecia entre eles e os servia humildemente” (LTC 11,11).



 
Paz e Bem

 

 

Frei Salvio Romero, eremita capuchinho.

 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Francisco
 
antes de sua conversão
 
 
 
Como era o jovem Francisco antes de sua conversão? Quais os principais traços de sua personalidade? Quais eram suas virtudes e seus defeitos? Para responder a essas perguntas, vamos recorrer às obras dos biógrafos mais antigos do santo.
 
 
 
 
 
 
Talvez a consideração mais severa sobre juventude de Francisco seja aquela da primeira biografia do santo, escrita pelo frei Tomás de Celano, provavelmente entre 1228 e 1230: "Causava admiração a todos e esforçava-se por ultrapassar os outros no fausto da vanglória, nos jogos, nas extravagâncias, nas palavras jocosas e frívolas, nas canções, nas vestes macias e amplas: isto porque era muito rico, não avarento, mas pródigo, não acumulador de dinheiro, mas dilapidador de bens, negociante cauteloso, mas também esbanjador muito frívolo; no entanto era homem que agia muito humanamente, habilidoso e muito afável, embora para a própria insensatez" (1Celano 1,3-4).
 
 
O jovem de Assis é apresentado como uma pessoa que naturalmente era otimista, alegre e de muito bom humor. É o que podemos concluir quando lemos, por exemplo, o relato de sua prisão em Perúgia: "Os companheiros de prisão são absorvidos pela tristeza, lamentando miseravelmente o evento de seu aprisionamento; Francisco exulta no Senhor, ri das cadeias e despreza-as. Os que lamentam repreendem a alegria nas cadeias, consideram-no como insano e demente" (2 Celano 4,3-4).
 
 
 
 
 
O Frei Juliano de Espira, que escreveu uma biografia do santo provavelmente entre os anos de 1232 e 1239, nos diz a respeito da infância e juventude de Francisco: "Indecentemente criado desde a infância nas vaidades do mundo, tornou-se mais insolente que seus próprios criadores. Para que falar mais? Buscava incessantemente a glória e a paupérrima felicidade deste mundo; e, tentando avantajar-se nisso a todos, mostrava abertamente com jogos e brincadeiras, com gestos e hábitos, com palavras vãs e canções, a superficialidade do seu coração insatisfeito (...) Por causa da facilidade com que esbanjava, era considerado afável e humano e arrastava após si uma iníqua cauda de amigos que o seguiam como cabeça e guia pelo caminho da ruína (...). Assim, preso entre as filas de seus cúmplices, andou pela estrada da perdição até quase a idade de vinte e cinco anos" (Juliano de Espira 1,2-6).
 
 
Por outro lado, São Boaventura, ao escrever a Legenda Maior em 1262, procurou mostrar mais as virtudes do jovem Francisco do que os seus defeitos: "A suave mansidão com a elegância dos costumes, a paciência e a amabilidade acima da medida humana, a generosa liberalidade acima da disponibilidade dos bens, virtudes com as quais o adolescente era visto crescer como com indícios certos de boa índole" (Legenda Maior 1,1).
 
 
 
 
 
 
A Legenda dos Três Companheiros (obra do século XIII ou no máximo dos inícios do século XIV) é uma das biografias que mais nos oferecem informações sobre a juventude do santo de Assis. Esta Legenda afirma bem claro que Francisco "exerceu o ofício do pai, isto é, o comércio, mas de maneira muito diferente, pois era mais alegre e liberal do que ele" (LTC 2,2-3).
 
 
Ele gostava muito das diversões, dos amigos e das festas: "Aficionado aos divertimentos e aos cânticos, percorrendo a cidade de Assis de dia e de noite em companhia dos eram iguais a ele, muito pródigo em gastar, a ponto de dissipar, em banquetes e outras coisas, tudo o que podia ter e lucrar" (LTC 2,3).
 
 
 
 
 
 
Ainda segundo a Legenda dos Três Companheiros, os pais de Francisco chegavam a se surpreender com as atitudes extravagantes do filho: "Muitas vezes era repreendido pelos pais que lhe diziam que ele fazia tão grandes despesas consigo mesmo e com os outros que não parecia filho deles, mas de algum grande príncipe" (LTC 2,4).
 
 
Outro detalhe curioso, descrito nesta mesma legenda, revela para nós um pouco mais sobre o comportamento do jovem Francisco: "Também se excedia de múltiplas maneiras nas vestes, fazendo roupas mais caras do que lhe convinha ter. E também era tão frívolo na excentricidade que, de vez em quando, na mesma veste mandava costurar um pano muito caro a um pano extremamente barato" (LTC 2,7-8).
 
 
 
 
 
 
 
Por fim, a Legenda dos Três Companheiros nos oferece ainda uma última informação sobre o nosso jovem, afirmando que ele era "naturalmente cortês nos costumes e nas palavras, não dizendo a ninguém, de acordo com o propósito de seu coração, palavra injuriosa ou obscena; pelo contrário, como era jovem brincalhão e alegre, propôs jamais responder aos que lhe dissessem coisas vergonhosas (LTC 3,1).
 

Paz e Bem

 
 
Frei Salvio Romero, eremita capuchinho.
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quarta-feira, 11 de setembro de 2013


Ambições do jovem Francisco









 
Entre 1202 e 1203 o jovem Francisco passou pela dolorosa experiência do cárcere na cidade de Perúgia. Saindo de lá gravemente enfermo, voltou para a casa de seus pais onde conseguiu se restabelecer lentamente. A Legenda dos Três Companheiros afirma que: “Terminado o ano, e restabelecida a paz entre as mencionadas cidades, Francisco voltou a Assis com seus companheiros de prisão” (LTC 4,6).
 

Segundo um grande conhecedor deste assunto, “Francisco voltou a Assis, à sua vida costumeira, às suas ambições adormecidas, à sua generosidade” (Raoul Manselli, S. Francisco, Vozes, 1997, pág. 53). Entre essas ambições encontrava-se a de ser condecorado com o título de “Cavaleiro”, honraria geralmente reservada à nobreza. Ainda segundo o mesmo autor citado acima, esse desejo de Francisco, relatado pelos biógrafos do santo, não é desprovido de um fundamento histórico: “O rico comerciante, que aspira a tornar-se nobre, aparece frequentemente na vida italiana destes séculos e destes anos” (idem, pág. 54).
 
 
 
 

 
A Legenda dos Três Companheiros nos conta como o jovem Francisco teve oportunidade de realizar seu grande sonho: “Um certo nobre da cidade de Assis se prepara com armas militares para ir à Apúlia, afim de aumentar as conquistas em dinheiro e em honra. Tendo ouvido isto, Francisco anseia por ir com ele e, para ser feito cavaleiro por um certo conde de nome Gentil, prepara como pode roupas preciosas, sendo mais largamente pródigo do que seu concidadão, embora mais pobre em riquezas” (LTC 5,1-2).
 

Estamos por volta do ano de 1205, e Francisco conta agora com 23 anos. Enquanto ele aguardava o início da viagem, ocorreu algo significativo: “Quando à noite dormia em seu leito, apareceu-lhe alguém que, chamando-o pelo nome, o conduziu a um palácio de indizível e magnífica beleza, cheio de armas militares e também de resplendentes escudos assinalados por uma cruz que pendiam em todas em todas as paredes ao seu redor” (Anônimo Perusino 5,2).
 
 
 
 

Francisco ficou admirado com a beleza do palácio e das armas. Perguntando de quem era tudo aquilo, veio-lhe a resposta: “Todas estas coisas, juntamente com o palácio, são tuas e dos teus cavaleiros” (AP 5,3). Quando ele acordou, entendeu que aquele sonho era uma confirmação de seus planos, e que poderia de fato chegar a ser um grande cavaleiro. Por isso, “tendo-se tornado mais alegre do que de costume, era admirado por todos. Aos que lhe perguntavam sobre a causa de onde provinha esta nova alegria respondia: ‘Sei que hei de ser um grande príncipe’” (AP 5,7).
 
 

 
 
 
Chegou finalmente o dia da partida e lá se foi o jovem em direção à Apúlia para conquistar seu sonho de ser cavaleiro: “Quando chegou a Espoleto, preocupado com sua viagem, e à noite se preparava para dormir, meio dormindo, ouviu uma voz que o interrogava para onde queria ir. Ele lhe revelou, por ordem, todo o seu propósito. De novo, a voz lhe disse: ‘Quem pode ser-te mais útil, O Senhor ou o servo?’ Ele respondeu: ‘O Senhor’. ‘Por que então deixas o Senhor pelo servo e o Príncipe pelo vassalo?’ Francisco lhe diz: ‘Que quereis que eu faça, Senhor?’ Diz-lhe: ‘Volta para a tua terra para fazer o que o Senhor te há de revelar” (AP 6,2-7).
 

Assim que amanheceu, ele voltou para Assis “alegre e exultando muitíssimo, esperando a vontade do Senhor. (...) Transformado já na mente, recusa-se a ir à Apúlia e deseja conformar-se à vontade divina” (LTC 6,12-13). Segundo o autor do Anônimo Perusino, “tomando o caminho, quando chegou a Foligno, vendeu o cavalo em que estava montado e as vestes com as quais se ornara para ir à Apúlia, vestindo-se de roupas mais baratas” (AP 7,2).
 
 
 
 
 

Retornando a sua cidade, é possível que Francisco tenha enfrentado um sério conflito com sua família por causa da sua desistência, tendo em vista os altos investimentos na preparação para a guerra. Os biógrafos não falam sobre esse possível conflito, mas podemos certamente supô-lo, tendo em vista o temperamento e as ambições de Pedro Bernardone, pai de Francisco.

 



Paz e Bem

 
 
 

Frei Salvio Romero, eremita capuchinho.

 

 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013


A prisão do jovem Francisco

 


 

Quando jovem, alguns anos antes de sua conversão, Francisco experimentou o terror da guerra e da prisão. Na guerra, ele deve ter presenciado a morte de muitos e, na prisão, deve ter sofrido os horrores do cárcere com seus companheiros de luta. Como um jovem da categoria de Francisco deve ter vivenciado tudo isso? Como todo esse sofrimento deve ter contribuído para mudar o sentido de sua vida?
 
 

 


 
 
O jovem Francisco ainda não sabia o que significava a dor e o sofrimento em sua vida. Segundo Raoul Manselli, grande estudioso do santo de Assis: “Comerciante jovem, mas esperto nos negócios, Francisco era amante do fausto e do luxo, dado a um estado de vida que o colocasse em destaque pela generosidade, pela largueza de bens, pela elegância, pela ‘cortesia’, com a aspiração ambiciosa a ser o primeiro, a estar sobre os outros: acreditava poder consegui-lo através de sua riqueza e do que esta lhe podia dar, olhando para um futuro de prosperidade e grandeza” (Raoul Manselli, São Francisco, Vozes, 1997, pág. 51-52).


Era o ano de 1202. O jovem Francisco estava com vinte anos. A cidade de Assis entra em sério conflito com Perúgia, cidade vizinha e mais poderosa. A guerra estava anunciada! Muitos cidadãos de Assis, incluindo o jovem Francisco, se preparam para a luta. Em Collestrada, um lugarejo entre as duas cidades, se deu o enfrentamento dos dois exércitos. O exército de Perúgia venceu, e muitos dos combatentes de Assis foram presos, inclusive Francisco.
 
 

 


 
 
O filho de Pedro Bernardone que nunca tinha sido privado de nada, agora está jogado numa terrível e humilhante prisão na cidade de Perúgia. Aquele que vivia alegremente em festas e banquetes com seus amigos, agora prova da amargura de um cárcere imundo e escuro. A Legenda dos Três Companheiros assim nos relata: “No tempo em que houve a guerra entre Perúgia e Assis, Francisco foi capturado com muitos concidadãos seus e encarcerado em Perúgia, mas porque era nobre de costumes, foi colocado como prisioneiro com os cavaleiros” (LTC 4,1). É interessante notar este último detalhe: o fato de ficar preso junto dos cavaleiros (nobres) demonstra a posição e o prestígio de Francisco, apesar de não pertencer a esta classe.


Tanto Tomás de Celano (2Cel 4) quanto a Legenda dos Três Companheiros (LTC 4) nos mostram que o jovem Francisco, mesmo na prisão, conservou seu jeito extrovertido de ser: “Num dia em que seus companheiros de prisão estavam tristes, ele, que naturalmente era sorridente e jovial, não parecia entristecer-se, mas de certo modo parecia alegrar-se. Por causa disso, um dos companheiros o repreendeu como a um louco, porque mesmo lançado no cárcere, se alegrava. Ao que Francisco respondeu com voz vigorosa: ‘Que pensas de mim? Ainda serei venerado por todo o mundo’” (LTC 4,2-4).
 

 


 
 
Havia entre os prisioneiros um cavaleiro que, por injuriar outro colega, foi isolado pelos demais. O biógrafo nos oferece uma pequena informação deste episódio que realça um dos traços da personalidade do jovem de Assis: “Somente Francisco não lhe nega companhia, mas exorta também os outros a fazerem o mesmo” (LTC 4,5).


Os estudiosos afirmam que foi neste período da prisão em Perúgia que Francisco adoeceu gravemente. “O primeiro e rude golpe na saúde do filho do mercador de Assis ocorreu na prisão de Perúgia, nos anos de 1202-1203. Por um ano inteiro ficou naquele calabouço escuro, frio e anti-higiênico. Foi resgatado porque adoeceu tão gravemente que morreria em breve” (Aldir Crocoli, São Francisco, Revisitando sua história, ESTEF, Porto Alegre, 2011, pág. 72).
 
 

 
monumento diante da Basílica de S. Francisco, em Assis,
representando o santo quando jovem.

 
 
Teria o jovem prisioneiro adoecido de que? Segundo alguns estudos, uma primeira hipótese aponta para a possibilidade de Francisco ter sido contaminado pela tuberculose, mas a hipótese mais aceita é a que ele tenha sido infectado pelo vírus da malária. Os sintomas descritos em outros momentos da vida do santo parecem confirmar esta segunda hipótese.


Esta dolorosa experiência do jovem Francisco foi um divisor de águas em sua vida. A prisão e a doença lhe forçaram a repensar a sua história. Tomás de Celano faz uma interpretação neste sentido: “Libertado da prisão, depois de pouco tempo, torna-se mais benigno com os necessitados. Decide daí por diante que não desviará seu rosto de pobre algum que, ao pedir-lhe, lhe propuser o amor de Deus” (2Cel 5,1-2).
 
 

 


 
 
A dor e o sofrimento, quando aceitos e acolhidos com sabedoria, podem se transformar em oportunidade de crescimento e de libertação. De fato, tinha razão o grande Santo Agostinho quando afirmava que Deus de um mal pode tirar um bem. Que a experiência do jovem rico de Assis possa iluminar os nossos passos especialmente quando trilharmos certos caminhos dolorosos e obscuros.
 
 

 

Paz e Bem

 

 
Frei Salvio Romero, eremita capuchinho.