O Trânsito de São Francisco
Conservando uma antiga tradição, a Ordem de São Francisco costuma celebrar o “Trânsito” (passagem para a vida eterna) de seu pai fundador ao entardecer do dia 03 de outubro. Em alguns lugares esta celebração ocorre à noite com a presença de muitas pessoas devotas, incluindo até mesmo a dramatização dos últimos momentos do santo aqui na terra.
O Frei Tomás de Celano, escritor da primeira “biografia” de São Francisco por ocasião de sua canonização em 1228, nos descreve em detalhes como se deu o trânsito do seráfico pai:
“No sexto mês antes do dia de sua morte, estando em Sena para tratar da enfermidade dos olhos, começou a adoecer gravemente em todo o corpo e, estando debilitado o estômago por longa doença e pelo mau estado do fígado, vomitou muito sangue, de modo que parecia aproximar-se da morte” (1Celano 105,1).
Frei Elias, o Vigário Geral da Ordem de São Francisco, informado sobre a grave situação, veio imediatamente para junto do santo para lhe dar toda assistência necessária:
“Na chegada dele, o santo pai convalesceu tanto que, tendo deixado aquela terra, veio com ele a Celle di Cortona. Chegando ele e morando ali por algum tempo, o ventre dele se dilatou, as pernas intumesceram, os pés incharam, e o mal do estômago atacou cada vez mais, de modo que mal conseguia tomar algum alimento. Pediu, então, a Frei Elias que fizesse com que ele fosse transportado para Assis” (1Celano 105,4-5).
Celle di Cortona: convento construído no local onde São Francisco morou por algum tempo. |
De volta à sua cidade natal, e estando hospedado no palácio do bispo, sentiu que sua hora se aproximava:
“Por esta razão, rogou aos irmãos que o transportassem apressadamente ao eremitério de Santa Maria da Porciúncula. Pois queria entregar a alma a Deus lá onde, como foi dito, no início conheceu com perfeição o caminho da verdade” (1Celano 108,11-12).
Um dos caminhos que ligam Assis ao vale onde se localiza a Porciúncula. |
No caminho para a Porciúncula o pai Francisco quis abençoar a sua cidade querida:
“Quando aqueles que o carregavam chegaram ao hospital que fica a meio caminho entre Assis e Santa Maria, pediu aos carregadores que pusessem o leito por terra. Embora, devido à longa e grave doença dos olhos, já quase não pudesse ver, mandou voltar o leito para ter o rosto na direção da cidade de Assis. E, erguendo-se um pouco no leito, abençoou a cidade” (2Espelho de Perfeição 124,3-5).
De fato, os últimos dias do santo pai Francisco transcorreram naquele lugar muito amado, a Porciùncula, no qual ele sentia uma forte presença da graça divina:
“Depois de ter descansado poucos dias no lugar muito desejado e sabendo que era iminente a hora da morte, chamou junto a si dois irmãos e filhos seus prediletos, ordenando-lhes que cantassem em alta voz e na exultação do espírito os Louvores ao Senhor pela morte próxima, ou antes, pela vida tão próxima. E ele, como pôde, prorrompeu naquele salmo de Davi e disse: ‘Com minha voz clamei ao Senhor, com minha voz supliquei ao Senhor’ (Sl 141)” (1Celano109,5-6).
“Mandou, finalmente, que fosse trazido o códice dos Evangelhos e pediu que fosse lido o Evangelho segundo João a partir daquele lugar em que começa: Seis dias antes da Páscoa, sabendo Jesus, que chegara a sua hora de passar deste mundo ao Pai (Jo 13,1)... Mandou, em seguida, que fosse colocado sobre o cilício e aspergido com cinza aquele que em breve seria terra e cinza” (1Celano110,1.3).
Um pouco antes de 1247 o Frei Tomás de Celano recebeu a missão de elaborar uma nova obra sobre a vida de São Francisco, a qual nos oferece outros detalhes sobre os últimos dias do santo:
“Estando ele assim desgastado por sofrimentos de todos os lados, é admirável que ainda pudesse ter forças suficientes para suportá-los. Chamava, no entanto, suas angústias não com o nome de penas, mas de irmãs” (2Celano 212,1-2).
“Alquebrado, pois, por aquela enfermidade tão grave que colocou um fim a todo sofrimento, ele mandou que fosse deposto nu sobre a terra nua... Colocado assim sobre a terra, despojado da veste de saco... cobriu com a mão esquerda a chaga do lado direito para que não fosse vista. E disse aos irmãos: ‘Eu fiz o que é meu [dever]; que Cristo vos ensine o que é o vosso!’
Ao verem estas coisas, os filhos produzem rios de lágrimas e, tirando do íntimo longos suspiros, sucumbem ao compadecer-se com imensa dor. Neste ínterim, tendo contido de algum modo os soluços, o seu guardião, que por divina inspiração reconheceu o que ele realmente desejava, levantou-se rapidamente e, tomando uma túnica com os calções e um gorro, disse ao pai: ‘Saibas que esta túnica, os calções com o gorro, pelo mandato da santa obediência, te são emprestados por mim! Mas, para que saibas que não tens nenhuma propriedade sobre eles, tiro-te o poder de dá-los a alguém’. O santo alegra-se e regozija-se com grande alegria do coração, porque percebe que manteve até ao fim a fidelidade à senhora pobreza. Fizera todas estas coisas pelo zelo da pobreza, de modo que no fim não queria ter hábito próprio, mas como que emprestado por outro. E ele havia usado um gorro de saco na cabeça para cobrir as cicatrizes que recebera em vez da saúde dos olhos; para ele era extremamente necessário um gorro de lã preciosa, que fosse muito macio” (2Celano 214-215).
“E assim, estando os irmãos a lamentar amargamente e a chorar inconsolavelmente, o santo pai mandou que lhe fosse trazido um pão. Ele o abençoou e o partiu e deu um pedacinho a cada um para comer (...).
Passou assim, em louvor, os poucos dias que lhe restavam até a morte, convidando seus irmãos mui diletos a louvarem consigo o Cristo... Convidava também todas as criaturas ao louvor de Deus e, por meio das palavras que outrora compusera, ele próprio as exortava ao amor de Deus. Exortava ao louvor até a própria morte, terrível e odiosa para todos, e, indo alegre ao encontro dela, convidava-a à sua hospitalidade; disse: ‘Bem-vinda, minha irmã morte!’ (2Celano 217).
São Boaventura acrescenta-nos uma outra informação:
“As cotovias, que são amigas da luz e detestam as trevas dos crepúsculos, na hora do trânsito do santo homem, sendo que o crepúsculo da noite já estava iminente, chegaram em grande multidão sobre o teto da casa e, rodeando longamente com uma insólita jubilação, davam testemunho alegre e evidente da glória do santo que costumava convidá-las ao louvor divino” (Legenda Maior 14,6).
No trânsito do pai Francisco estava presente uma senhora da nobreza romana chamada Jacoba de Settesogli que “merecera o privilégio de uma afeição toda particular da parte do santo” (3Celano 37,1):
“Poucos dias antes da morte do santo, este, prostrado pela doença prolongada ... quis enviar uma mensagem a Roma dirigida à Senhora Jacoba, comunicando-lhe que se apressasse, caso desejasse ver aquele a quem tanto amara ... Foi escrita uma carta; procurou-se um mensageiro capaz de ir com toda a rapidez. Descobriu-se alguém que se dispôs a partir imediatamente. Diante da porta, no mesmo instante, ouve-se o tropel de cavalos chegando, o estrépito de soldados e o rumor de uma comitiva. Um dos companheiros do santo, justamente aquele que preparava o mensageiro, dirigindo-se à porta, encontra presente aquela que ele procurava como ausente. Todo maravilhado, correu depressa ao santo e, não cabendo em si de tanta alegria, disse-lhe: ‘Boas novas anuncio, pai!’ Antes mesmo de ouvir o que o outro lhe ia dizer, o santo respondeu imediatamente: ‘Bendito seja Deus, que nos enviou nosso irmão, Senhora Jacoba! Abri as portas e introduzi-a, pois o decreto que proíbe a entrada de mulheres não vale para Frei Jacoba’.
Tudo quanto a carta pedia que fosse trazido para as exéquias do pai esta santa mulher o trouxera. Um pano cinza para cobrir o corpo moribundo, muitas velas, um sudário para cobrir o rosto, um travesseiro para a cabeça, e mesmo algumas iguarias de que o santo gostava. Tudo o que o espírito desse homem desejara Deus havia trazido ... A multidão, sobretudo a devota população da cidade, esperava, para breve, o nascimento do santo pela sua morte. Mas a chegada da devota romana deu mais força ao santo, e havia esperança de que ele viveria ainda um pouco mais. Esta senhora decidiu despedir os demais de sua comitiva, mantendo junto a si apenas seus filhos e alguns escudeiros. O santo a dissuadiu: ‘Não, disse-lhe ele, porque vou morrer no sábado; partirás domingo de volta com todos’. Assim aconteceu: na hora anunciada, entrou na Igreja triunfante aquele que com tanta bravura servira nas fileiras da Igreja militante. (...)
Enfim, particularmente banhada em lágrimas, conduzindo-a com discrição e entregando-lhe nos braços o corpo do amigo, o vigário do santo diz: ‘Eis aqui, toma nos braços, depois de morto, aquele a quem amaste quando vivo’. Derramando lágrimas ardentes sobre o corpo do santo, repetia palavras suaves e soluços, abraçando-o com lânguidos abraços e ósculos ... Contempla o vaso precioso em que o precioso tesouro estivera escondido, ornado com cinco pedras preciosas ... E assim, cheia de alegrias incomuns, reviveu no amigo morto. (...) Retorne então a peregrina à sua cidade, consolada com o privilégio de tamanha graça, e nós, depois de haver narrado a morte do santo, passemos a outros fatos” (3Celano 37-39).
Finalmente, ao entardecer do dia 03 de outubro de 1226, o pai Francisco abraçou a irmã morte realizando de modo santo e feliz o seu trânsito para a vida eterna. Aquele que não se cansou de entoar os louvores de Deus durante a sua vida “recebeu a morte cantando” (2Celano 214,4).
No dia seguinte, 04 de outubro de 1226, uma multidão acorreu à Porciúncula para conduzir o corpo do santo à igreja de São Jorge, dentro dos muros da cidade, onde ficaria sepultado. No caminho, antes de chegar à cidade, o cortejo fúnebre parou um pouco no mosteiro de São Damião:
“Passando também pela igreja de São Damião, na qual aquela nobre virgem Clara – agora gloriosa nos céus – então morava reclusa com outras virgens, e aí mantendo por algum tempo o sagrado corpo marcado com as pérolas celestes, apresentaram-no para ser visto e beijado por aquelas santas virgens. Em seguida, chegando à cidade com júbilo, sepultaram na igreja de São Jorge, com toda reverência, o precioso tesouro que levavam. De fato, naquele lugar, ainda menino, ele aprendeu as letras, aí depois pregou, aí finalmente recebeu o primeiro lugar do repouso” (Legenda Maior 15,5).
Em 1230 o corpo de São Francisco foi transladado para a grande basílica construída em honra do santo.
Basílica de São Francisco. |
Altar onde estão os restos mortais de São Francisco. |
Aqui repousam os restos mortais de S. Francisco. |
Capela do Trânsito de São Francisco, localizada por trás da Porciúncula. |
Capela do Trânsito de S. Francisco. |
Celle di Cortona: convento construído no local onde S. Francisco viveu por algum tempo. |
PAX ET BONUM
Nenhum comentário:
Postar um comentário